Ontem, sábado, estive numa conferência na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Esta conferência, a Talk-a-Bit, teve a participação de várias pessoas, desde algumas mais conhecidas a outras menos conhecidas. No entanto, houve uma que teve especial relevo, não pelo interessante que tenha sido, mas pela baixaria que se revelou. Refiro-me à apresentação do senhor Miguel Gonçalves, nome que já circula por aí, um auto-intitulado mentor. Começou mal. Este cavalheiro, contrariamente aos restantes palestrantes, recusou-se a usar a respectiva coleira (a fita com a credencial de orador) e a subir ao palco. Preferiu ficar mais junto da plateia, numa falsa modéstia gritante. Ora, não o fez pela humildade - que não o assiste, mas para se escudar do temporizador que lhe era apresentado nos monitores existentes em palco, temporizador esse que existia justamente para ajudar cada um dos oradores a conduzir a sua apresentação dentro do tempo reservado. Sem surpresas, mais do que ultrapassou esse tempo, mas também não quis saber. Fez com que o programa tivesse tido que ser alterado. E fugiu antes que lhe pudessem ter feito alguma pergunta, deixando todos para trás, porque tinha "outro compromisso". Bem, se me convidassem para participar num evento destes, não ia ser no próprio dia que ia fazer com que alterassem o programa por outros compromissos. Um outro compromisso é algo que é marcado com antecedência.
E ai dele que me tratasse a mim da forma que tratou outros oradores. Faltas de respeito, é com este senhor.
E ai dele que me tratasse a mim da forma que tratou outros oradores. Faltas de respeito, é com este senhor.
Não contente com essa situação, a sua apresentação, cujo tema era "Processo de Criação de uma Empresa" foi sobre tudo menos sobre o descrito no título. Toda a sua apresentação não passou de tempo desperdiçado a falar sobre os seus próprios projectos, aquilo em que trabalhava, o facto de facturar "400k€" por ano e uma dose obscena de evangelização das mentes mais influenciáveis da plateia. Evangelização? Sim. O tempo foi gasto entre a sua auto-promoção e o evangelizar dos mais novos e mais inocentes em que deveriam preocupar-se era em ir trabalhar para outros, em como se apresentar em entrevistas, como responder a ofertas de emprego. Muito atento que estive, não ouvi uma única frase sobre o processo de criação de empresas.
Uma das frases que ouvi da boca deste senhor" e que mais me marcou e, reforço, de uma maneira muito negativa, foi algo do género:
- "Antes de criarem a vossa própria empresa, vão trabalhar para a dos outros, porque lá os erros saem baratos que não são vocês que os pagam."
Então este homem está a dizer que se deve primeiro ir estragar o quintal dos outros e manchar o próprio currículo antes de se tentar criar a própria empresa? Mas que pouca vergonha, infantilidade e irresponsabilidade é esta? Este discurso é perigoso, ou mesmo letal. Não, minha gente. Qualquer pessoa de sonhos e desejos, deve acabar a faculdade, fazer o estágio e depois disso, nessa transição entre o estágio e o emprego a tempo inteiro, é que se deve meter na aventura de tentar criar a própria empresa. Porquê? Porque alguém que avance para contrato permanente noutra empresa, não vai ser alguém com grandes hipóteses de se meter em aventuras no futuro. Começando a vida na empresa de outros, vai estar a começar-se uma carreira, a deixar o cheiro numa cadeira. O trabalhador vai começando a ganhar sentido de pertença e de segurança profissional. Vai deixar-se meter noutra aventura que será o deixar a sua família crescer, comprar casa, ter filhos. Vai, então, ter que pagar uma casa, ter que sustentar uma família. Aí é que definitivamente deixa de ter a hipótese de se meter em aventuras. Porque aí, a vida deixou de ser só sua, e deixou de responder só para consigo mesmo. Aí, essa pessoa já está no estado de "agora já não saio, já avancei muito na carreira, estou muito estável, não posso correr o risco de perder tudo.", tenha, ou não, mais bocas para sustentar.
Entrando para outra empresa com a intenção de aprender para não cometer os erros na sua, é a mentalidade retrógrada. Caso as coisas corram mal, fica-se com o currículo manchado e entrevistas subsequentes noutras empresas poderão ter respostas menos do que desejáveis.
Alguém que se queira meter em aventuras, terá que o fazer novo. Antes de ter dependentes. Antes de ter uma casa para pagar, de preferência; antes de correr o risco de manchar o currículo com as asneiras que fez a trabalhar para outros. Porque se a criação da própria empresa correr mal, terá aprendido muito mais. Terá sempre a hipótese de tentar de novo logo de seguida. E se as hipóteses ou o tempo se esgotar e tiver mesmo que ir trabalhar para alguém, então levará muito mais experiência e um currículo muito mais apetecível. Já o oposto, será sempre mentira.
Teve também, este cavalheiro, o descaramento de dizer:
- "Hoje em dia, os patrões já não vêem os recém-licenciados de engenharia como o estagiário para ir tirar cafés, hoje vêem-nos como os gajos das ideias que toda a gente respeita."
Eu imagino que o senhor Miguel Gonçalves possa ser um episódio do Fringe, porque este mundo que ele descreve, a existir, será, sem sombra de dúvida, numa realidade alternativa.
Não compreendo como ainda ninguém denunciou esta pessoa como uma fraude. Compreendo, no entanto, como é que ele faz os tão exibidos "400k€" por ano. Só posso especular que seja pelo patrocínio das empresas contratantes, que adoram o seu discurso evangelizador e destruidor de sonhos, por levar as nossas melhores mentes a deixar de lado as suas ideias e capacidade criadora em troca das falsas sensações de segurança e estabilidade provenientes de um trabalho invariavelmente mal pago, fonte de mutilação mental e frequentemente incapaz de levar alguém a sentir-se profissional ou pessoalmente realizado.
Os nossos melhores sentem-se capados e têm vidas infelizes. Porque se tentarem, podem não conseguir, mas se não tentarem é que definitivamente nunca conseguirão. E este tipo de discurso, se seguido, vai garantir que nunca tentarão.
Depois admiram-se que os melhores emigram.